Biomecânica de um chute de bicicleta do Pelé

Marcos Duarte

Trajetórias de partículas sub-atômicas são traçadas utilizando-se os princípios fundamentais de conservação da Física; novos planetas são detectados também por estes princípios, incorporados nas clássicas leis de movimento enunciadas pelo grande físico inglês Sir Isaac Newton no século XVII.

Dois séculos mais tarde, o futebol como conhecemos atualmente foi criado pelos ingleses. Nos dias de hoje, o futebol é o esporte mais popular do mundo com uma audiência de cerca de metade da população mundial na Copa do Mundo de 2002. Qualquer movimento na natureza deve obedecer as leis de movimento de Newton, mas o futebol vai além; em sua essência, futebol é uma combinação de força e velocidade tanto quanto habilidade e criatividade - uma suprema amálgama de racionalidade e irracionalidade.

Mas jogadores de uma outra nacionalidade de algum modo integraram as leis de Newton com criatividade como ninguém havia feito; eles foram liderados pelo maior jogador de todos os tempos, o brasileiro Edson Arantes do Nascimento, também conhecido como O Rei, mas mais conhecido pelo seu simples nome, Pelé.

Nem um outro movimento no futebol é tão espetacular quanto o gesto conhecido como o chute de bicicleta: quando o jogador chuta a bola no ar e de costas sobre sua própria cabeça. Muitos jogadores tentaram; alguns tiveram sucesso mas poucos realizaram a bicicleta perfeita. Um perfeito chute de bicicleta é um evento raro, mesmo na Copa do Mundo não é garantido que alguém presenciará tal chute, mas se isso acontecer, o ingresso valeu a pena. 

Aqui nós mostramos que as mesmas leis utilizadas para detectar partículas e planetas podem ser aplicadas para identificar um perfeito chute de bicicleta no futebol. Para tanto, nós revelamos os sutis detalhes de um chute de bicicleta realizado pelo jogador que tinha este movimento como sua assinatura, Pelé.

Veja o vídeo da bicicleta do Pelé aqui.


Métodos

Os métodos aqui utilizados pertencem a uma área de estudos conhecida como Biomecãnica. Basicamente, Biomecânica estuda os sistemas biológicos utilizando os princípios da Mecânica e métodos experimentais apropriados. A presente análise usa uma abordagem simples para descrever o movimento sob estudo se comparado à complexidade real do movimento humano; parte desta escolha se deve a limitações metodológicas mas principalmente porque um modelo simples funciona e é legal mostrar que nós não precisamos de coisas complicadas para entender a natureza. Uma análise detalhada da mecânica do movimento humano é muito complicada devido à grande complexidade do corpo humano: por exemplo, mesmo considerando os segmentos do corpo humano como corpos rígidos, são necessárias 244 coordenadas independentes para caracterizar completamente a posição do corpo humano no espaço tri-dimensional, isto é, o corpo humano tem 244 graus de liberdade (Zatsiorsky, 1998). O físico Paul Dirac disse uma vez que o truque para evitar tal dificuldade é dividir o problema em duas partes, uma simples e a outra pequena. Resolve-se a parte simples exatamente e faz-se o melhor possível com a parte pequena ou esta é até  mesmo ignorada. 

Mas qual é o mínimo de complexidade necessário para se ter uma boa e não complexa descrição do fenômeno? Em geral, não há resposta para esta questão e é um assunto em discussão no campo da biomecânica. Nós podemos usar o princípio da navalha de Ockham: 'pluralidade não deve ser assumida sem necessidade', isto é, é fútil usar uma modelo complexo se um modelo simples pode explicar o fenômeno, ou ainda, em português claro, mantenha as coisas simples, estúpido. Mas devemos lembrar o que Einstein disse: 'faça o modelo tão simples quanto possível mas não simples demais' e nunca esquecer que 'para cada problema complexo, há uma solução que é simples, eficaz e errada (H.L. Mencken).

Ainda que haja diferentes registros de um chute de bicicleta, para uma análise quantitativa o vídeo deve atender uma condição: se somente um ângulo de visão (de apenas uma câmera) está disponível, para evitar erros de perspectiva (o que frequentemente acontece no julgamento de um impedimento no futebol (Oudejans et al., 2000)), este ângulo de visão deve ser perpendicular ao plano de movimento (que então é considerado como sendo um movimento planar). Também deve-se saber ou ser capaz de estimar a métrica do vídeo, isto é, a relação entre as dimensões reais da cena e da imagem do vídeo (pois é o que é analisado). Nós achamos um antigo vídeo com o Pelé satisfazendo estas condições (veja o vídeo). O movimento sob estudo é qualitativamente similar a outros chutes perfeitos de bicicleta e os resultados da presente análise podem ser generalizados.

Para os cálculos, as características corporais massa, centro de gravidade e raio de giro (para estimar a inércia rotacional) de cada segmento foram estimadas a partir de um modelo antropométrico (Zatsiorsky, 2002) e massa e peso do Pelé, 72 kg and 1,73 m. De cada um dos 92 quadros da cena, 18 referências anatômicas do Pelé e a posição da bola foram digitalizadas por um software comercial para análise cinemática chamado APAS. Estas coordenadas digitalizadas foram processadas na análise mecânica por um software especial escrito em MATLAB.


O chute de bicicleta

Ramon Unzaga, nascido na Espanha, é considerado o realizador do primeiro chute de bicicleta em 1914. Ele migrou para o Chile e seu chute passou a ser chamado 'a chilena'. O jogador brasileiro Leônidas da Silva, o 'diamante negro', aperfeiçoou a bicicleta nos anos 30 e 40, e Pelé divulgou-a mundialmente nos anos 60 e 70 (Galeano, 1999). Este movimento não leva nem um segundo para ser realizado mas é cheito de detalhes que a primeira vista nós não percebemos. O tempo de movimento total do chute de bicicleta realizado pelo Pelé é cerca de 0,8 s: 0,3 s para gerar o impulso para saltar e ele fica no ar por cerca de 0,5 s. As principais fases do movimento do chute de bicicleta, ilustradas na Fig.1a, são:

1. O salto: Pelé posiciona-se de costas para a direção que pretende chutar a bola e para pular, seu centro de gravidade (CG), definido como o ponto onde a resultante de todas as forças peso pode ser considerada agindo, está projetado um pouco atrás de seu pé de impulsão. Isto lhe permite ganhar rotação, quando aplica uma força no chão que passa a uma certa distância do CG, para saltar como numa cambalhota. 
O produto entre a força aplicada e a distância entre esta força e o ponto de aplicação é chamado torque ou momento de uma força. A perna que irá chutar a bola é a mesma usada para impulsionar o corpo e é a última a perder contato com o chão. A outra perna sobe e roda em torno do quadril enquanto a perna de chute ainda está em contato com o chão. No início do movimento, seu CG está a uma altura de 0,92 m e alcança 1,39 m, um deslocamento vertical de 0,47 m, como mostrado na  Fig.1b.

2. A tesoura: Uma vez completamente no ar Pelé, numa sincronia espantosa com a trajetória da bola, eleva a perna que irá chutar a bola e movimenta a outra perna na direção oposta: como o movimento de uma tesoura; o que pode ser verificado pelos ângulos entre o tronco e a coxa de cada perna, mostrado na Fig.1c. Enquanto o movimento é realizado, a cabeça é mantida numa posição fixa porque ele deve olhar para a bola. 
Para facilitar a rotação da perna de chute, ele dobra o joelho desta, aproximando os membros do quadril, e estende completamente a perna somente antes do chute para chutar a bola o mais alto possível, como os atletas de salto ornamental fazem para girar mais rápido quando mergulham. A propriedade física sendo alterada é chamada inércia rotacional, a propriedade de um corpo de resistir à mudança de seu movimento angular. A inércia rotacional é calculada como o produto entre a massa do corpo e a distância ao quadrado do corpo ao centro de rotação. Diminuindo a distância de cada segmento ao quadril diminui a inércia rotacional do membro inferior como mostrado na Fig.1d. No ar, os braços são mantidos longes do tronco no plano frontal para intencionalmente aumentar a inércia rotacional do corpo na direção longitudinal para atenuar qualquer perturbação rotacional nesta direção, como os acrobatas de circo fazem quando andam em um corda segurando um bastão comprido em suas mãos.

3. A batida da bola: A perna, em alta velocidade, intercepta a bola acima da altura de uma pessoa de pé, e altera o movimento da bola. Então por um momento (veja o vídeo), parece que seu corpo pára no ar e somente as pernas giram em torno do quadril. Este fenômeno é devido ao movimento dos outros segmentos do corpo que movem-se mais rápido que o tronco: ainda que o CG do corpo inteiro descreva uma trajetória parabólica, como previsto pelas leis clássicas da Mecânica, o tronco (tronco CG) na verdade move-se mais devagar no seu ápice por cerca de 150 ms, como mostrado na Fig.1b. 
Este efeito é bem conhecido pelos bailarinos e pode ser observado em movimentos como o grand jeté (Laws & Harvey, 1994). Pelé chuta a bola a uma altura de cerca de 2,2 m e a velocidade da bola depois do chute é cerca de 8,9 m/s ou 32 km/h; não é um chute potente, mas a bola adquire uma  velocidade maior do que se tivesse sido cabeçada.

Durante qualquer movimento humano no ar, ainda que se possa mudar a inércia rotacional e a velocidade angular de cada segmento e do corpo inteiro, o produto destas duas grandezas físicas, conhecido como quantidade de movimento angular ou momento angular, não muda para o corpo inteiro devido a uma lei fundamental de conservação em Mecânica: o momento angular de um sistema é constante se a soma dos torques externos agindo sobre o sistema é zero. Pelé parece violar esta lei durante sua bicicleta: no começo, logo após ele perder contato com o chão, parece que o corpo dele não está rodando e logo antes da batida da bola, sua perna tem um grande movimento angular. Esta aparente violação pode ser explicada se lembrarmos que o que está sendo inalterado é o produto entre velocidade angular e inércia rotacional. 

A Fig.1e mostra o momento angular do corpo inteiro e de cada uma das pernas durante a bicicleta. Ainda que a perna de chute tenha uma velocidade de rotação maior, a outra perna, rodando na direção oposta com uma velocidade menor, surpreendentemente espelha o momento angular da perna de chute de tal modo que a soma dos dois momentos permanece constante durante o movimento. Isto acontece porque a perna de chute está se movendo mais perto do CG do corpo do que a outra perna (o que significa uma menor inércia rotacional para a perna de chute). A Fig.1e revela a verdadeira tesoura no chute de bicicleta: os perfis dos momentos angulares das duas pernas perfeitamente simétricos. O resultado líquido durante o movimento inteiro é o mesmo: o momento angular total é constante, exceto quando parte dele é transferido para a bola no instante do chute como indicado na Fig.1e. Mas como Pelé saberia em qual velocidade ele deveria rodar a perna de tal modo a contrabalançar o momento angular da perna de chute sem perturbar o tronco? 


Figura 1. Análise do chute de bicicleta. Principais fases do chute de bicicleta: o salto (1), a tesoura (2) e a batida da bola (3) (a). Posição vertical do centro de gravidade, CG, do corpo inteiro e somente do tronco (b). Posição angular das pernas (c). Inércia rotacional da perna de chute (d). Momento angular do corpo inteiro e de cada uma das pernas (e). Os retângulos indicam períodos de mínima variação das curvas. Veja o vídeo da bicicleta do Pelé aqui.


Comentários finais

A partir desta análise, duas características podem ser apontadas como distintivas do chute de bicicleta perfeito: primeiro, deve-se estar de costas e paralelo ao chão no momento do chute da bola. Segundo e mais exclusivo, deve-se executar um movimento particular com as pernas, movendo-as em direções opostas antes do chute como uma tesoura; ou na linguagem da física, as pernas devem ter momentos angulares complementares.

Qualquer movimento na natureza, de partículas a planetas - e uma bicicleta do Pelé - não pode violar os princípios fundamentais de conservação da Física. Dizer isso não é uma tentativa de reduzir o esplendor deste momento único; melhor, nos permite contemplar como ciência e arte são parceiras na mesma jogada.

Mas talvez Pelé era mais do que podemos entender...
Em seu
último jogo em 1977, quando o Cosmos jogou contra o Santos no estádio do Giants em Nova York, estava chovendo depois do jogo e alguém explicou:
"Deus estava chorando."


Referências

Laws, K. & Harvey, C. (1994) Physics, Dance, and the Pas de Deux. New York, Schirmer Books.
Oudejans, R.R.D. et al. (2000) Errors in judging 'offside' in football. Nature 404, 33.

Zatsiorsky, V.M. (1998) Kinematics of Human Motion. Champaign, Human Kinetics.
Zatsiorsky, V.M. (2002) Kinetics of Human Motion. Champaign, Human Kinetics.


Links


Agradecimentos

Este trabalho teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP/Brasil. O autor agradece Sandro F. Stolf por sua ajuda técnica.